Análise em Foco > Personalidade
DROGAS ESTIMULAM CRIME, MAS CULPA NÃO É DE QUEM USA
Quinta-Feira, 01 de Outubro de 2015

Sete em cada 10 assassinatos, no Brasil, estão relacionados ao tráfico de drogas, informa a campanha de órgãos oficiais na TV, sugerindo que a culpa pelos crimes seria do usuário. Não obstante o fato de que a força do crime organizado realmente vem da produção e da distribuição de entorpecentes, esta é uma forma bem sutil de transferir ainda mais ônus para a sociedade, enquanto o bônus, como sempre, fica para o Estado e os agentes (públicos e privados) que dele se locupletam. Tal insinuação, sob um olhar mais crítico, soa como uma tentativa de mascarar ainda mais a inoperância estatal quando se trata de formular políticas públicas efetivas e transformadoras.


Ora, as estatísticas sugerem outra coisa, não que o usuário é co-autor de crimes com os quais não tem absolutamente nada a ver. Os números sugerem, isso sim, que é preciso pensar seriamente em descriminalizar a produção e o uso de entorpecentes, justamente para tirar dinheiro e poder do tráfico, dos traficantes e dos agentes públicos corrompidos que dão cobertura a eles – juízes, deputados, promotores, policiais e por aí vai. Não adianta esperar por esta “tomada de consciência†do usuário, que a campanha inócua da TV sugere. Ela não vai ocorrer, simplesmente pelo fato de que o uso, em uma sociedade livre e democrática, é um direito, oficial ou extra-oficial.


Na agência de publicidade que produziu a campanha, por exemplo, possivelmente tenha quem “fume um†ou “dê uns tecosâ€. Se lá não tiver, pode apostar que em alguma outra terá, afinal este é um segmento, assim como o da comunicação como um todo, incluindo o jornalismo, cheio de “doidõesâ€. Este e vários outros, aliás, todos infestados de “malucosâ€. Não adianta querer tapar o sol com a peneira. Falamos de gente normal, que leva uma vida produtiva e social: acorda, trabalha, come, dorme, cultiva relacionamentos, diverte-se e... usa drogas. A curva de desvio padrão, que inclui os usuários que perdem o controle sobre o vício, é equivalente à do álcool ou de qualquer outra substância entorpecente lícita, inclusive as medicamentosas – inibidores de apetite à base de anfetamina,por exemplo, não levam ninguém para a cadeia, mas são consumidos em larga escala e viciam muita gente.


Seriedade


Será bem mais efetivo,portanto, pensar em políticas sérias de gestão para o tema, pois do contrário o problema não será resolvido. Veicular propaganda sugerindo que o usuário tenha "consciência" certamente não vai resolvê-lo, então o poder público, as autoridades e os representantes do cidadão precisam encontrar uma fórmula que resolva. É para isso que eles existem, é para isso que deve funcionar a máquina pública, financiada com dinheiro do cidadão. Insinuar que este seja o culpado pela insegurança que assola as ruas do país, além de não resolver o problema, é tão injusto quanto condenável. Seria mais ou menos como responsabilizar as pessoas que comem transgênicos pela destruição das florestas ou as que ingerem alimentos com gordura hidrogenada pelo colapso do sistema público de saúde. Não faz sentido algum.


O culpado pela insegurança que assola o Brasil é o Estado brasileiro, completamente omisso, irresponsável e ineficaz na hora de gerir recursos públicos, elaborar políticas de gestão e oferecer serviços ao cidadão. Se os volumes abissais de dinheiro que se gasta com corrupção, desperdício e assistencialismo gratuito fossem investidos na formulação de políticas públicas consistentes (não só nesta área,mas em todas as outras), o país não estaria assistindo agora à falência e ao colapso de suas instituições políticas e administrativas, trazendo em seu rastro o crescimento da violência, do atraso econômico e da degradação social.


Equivalência


Assim como o indivíduo que deseja consumir comida industrializada em excesso e se entupir de gordura hidrogenada para depois ficar obeso ou hipertenso, o sujeito que procura as drogas também deveria encontrar amparo na legalidade. Se quem ignora as evidências de que a má alimentação prejudica a saúde obtém suporte médico para sua inconsequência (suporte que custa milhões e mais milhões para os cofres públicos todos os anos, aliás), não há porque negar o mesmo direito a quem deseja apelar para os entorpecentes. Afinal, ambos pagam a mesmíssima carga de impostos – bastante alta, diga-se de passagem.  


Maconha e cocaína hoje são drogas quase tão populares e consumidas quanto café e álcool, é preciso encarar esta realidade de frente. Tentar fugir dela e ainda tentar empurrar a conta da fuga para o cidadão não é correto, nem tampouco eficiente. Pelo contrário, só vai piorar ainda mais as coisas. Hora de encarar a realidade e olhar de frente para o problema. Só isso vai permitir resolvê-lo.




+ Notícias
Todos os direitos reservados © Copyright 2009 - Política de privacidade - A opinião dos colunistas não reflete a opinião do portal